EXPLICATUDO

EXPLICATUDO

A questão dos postulados em Kant.

A questão dos postulados em Kant.

A moral de Kant, ao contrário de muitos outros sistemas morais, não se fundamenta em nenhuma transcendência, como Deus e os seus mandamentos, etc. também, não segue o consenso da regra sociológica, o relativismo das normas e costumes: é antes a lei da razão, que determina a vontade, que vamos encontrar os pressupostos do acto moral, que Kant chamou de postulados na medida em que, embora necessariamente objectivos sob o ponto de vista prático, são insolúveis do ponto de vista teórico.

As consequências destes postulados são evidentes: não só irão reabilitar a Metafísica nos domínios que tradicionalmente reivindicava como seus ( Deus, a alma e o Mundo) como farão ver a superioridade do uso prático sobre o uso teórico da razão. Ou, por outras palavras, colocarão o homem (executor da prática) aqui também no centro do mundo, ou seja, no centro do mundo filosófico, e de certa forma sobreposto às leis teóricas ( leis da natureza) ainda que o processo de superação de um pelo outro (da prática sobre a teoria) inclua o homem num campo e noutro como motor de ambas.

Ou seja, a superação da antinomia é feita pelo homem e pela sua acção tanto num campo como noutro, ainda que o campo da filosofia prática, porque mais largo e mais aberto à intervenção do homem ( aliás é seu campo exclusivo) acabe por reflectir a actuação do mesmo de uma forma mais límpida e sem concurso.

Os textos que se seguem, convergem cada vez mais um projecto filosófico em que estão em jogo os fins últimos da razão, o próprio destino do homem.

Assim, neles se mostra:

a)- Que as ideias da razão pura, problemáticas no plano meramente especulativo, constituem as condições necessárias da moralidade;

b)- Que o conceito de liberdade é a chave da explicação da autonomia da vontade, isto é, que ela em si própria é autónoma;

c)- Que, exactamente pelo facto do homem ser um ser racional, pertencente por este lado ao mundo inteligível, só pode pensar a causalidade da sua vontade como liberdade e, deste modo, pensar-se como realidade numenal.

O ideal objectivo de perfeição que liga a virtude à felicidade é o soberano (ou sumo) bem, de onde decorrem os postulados da razão prática. Ora, estes, entendidos e compreendidos como especulações da razão pura que levam à razão prática são três (postulados):

1º A existência de Deus;

2º a imortalidade da alma;

3º a liberdade da vontade humana no seio da necessidade natural.

Todo este sistema conceptual (chamemos-lhe assim) se conjuga, de um lado, recusando criticamente a ideia do conhecimento do númeno ( do ser em si - de relembrar que o conhecimento de uma coisa subentende de certa forma um domínio do ser que conhece sobre essa coisa ) e por outro lado reconhecendo a possibilidade ( e a certeza) de que o indivíduo, enquanto númeno pode viver enquanto tal no mundo dos fenómenos (mundo da natureza) guardando esta sua dupla identidade, ou seja, enquanto fenómeno ( ser natural ) está sujeito às leis da natureza mas esta não delimita a sua actividade enquanto ser numenal.

Com efeito, da ideia de um progresso infinito necessário no homem para a sua realização, decorre a ideia de imortalidade da alma assim como da garantia da sua união perfeita decorre a ideia de Deus. Deste modo, o que na razão especulativa era transcendente, passou a imanente na ordem moral.

(Nota: embora Kant nas suas noções sobre história aponte para a infinidade da espécie humana - e não do homem visto individualmente ou como alma - através da sucessão de gerações, de forma a que esta assim possa cumprir as imensas tarefas que a história lhe destina enquanto ser fenomenal não é menos certo que esta ideia postula desde logo a necessidade de se vir a reconhecer a possibilidade da "existência" da alma como forma de transmissão do inteligível ( ou seja, daquilo que se não conhece mas do qual se tem percepção ). O próprio sistema de Kant não poderia enveredar por outro caminho, senão reconhecer a existência da alma, uma vez que se baseia desde o seu início na existência de dois mundos: o fenomenal e o numenal).

Assim a realização do supremo bem encontra o seu limite na condição humana, ainda que aqui se possa representar positivamente a acção causal da vontade livre que nos diz (...) que os objectos numénicos existem absolutamente. Com efeito, os limites da experiência são superados e o homem adquire uma certeza positiva para lá da experiência e parece ilegítimo encerrar o conhecimento nestes limites.

O primado da razão prática parece contrastar de modo evidente com a limitação do conhecimento humano dentro dos limites das possibilidades empíricas. De qualquer modo a prática do bem impõe sempre o acordo de duas naturezas diferentes, sensível e supra-sensível, segundo a sua legislação própria. ( sobre esta questão ver a harmonia procurada das faculdades).

A moral de Kant (enquanto moral, conforme já vimos e iremos vendo), ao contrário de muitos outros sistemas morais, não se fundamenta em nenhuma transcendência, como Deus e os seus Mandamentos, etc., conforme também já vimos, não segue o consenso da regra sociológica, o relativismo das normas e costumes: é antes da lei da razão, que determina a vontade, que vamos encontrar os pressupostos do acto moral, que Kant chamou postulados na medida em que, embora necessariamente objectivos sob o ponto de vista prático, são insolúveis do ponto de vista teórico.

Este aspecto encontra-se bem definido por Kant nas três perguntas que aliás são base temática desta construção :

Que posso saber?

Que devo Fazer?

e Que me é permitido esperar?

A terceira interrogação, diz-nos Kant, é ao mesmo tempo prática e teórica, de tal modo que a ordem prática apenas serve de fio condutor para a resposta à questão teórica e, quando esta se eleva, para a resposta à questão especulativa. Com efeito, toda a esperança ( o que posso esperar) tende para a felicidade (aquilo que de facto espero, e que subtendendo como resposta conveniente quando faço a pergunta) e esta ( a felicidade) está para a ordem prática e para a lei moral, precisamente da mesma forma que o saber e a lei natural estão para o conhecimento teórico das coisas.

A esperança leva, por fim, à conclusão que alguma coisa é (que determina o fim último possível ) porque alguma coisa deve acontecer; o saber, à conclusão que alguma coisa é ( que age como causa suprema) porque alguma coisa acontece.

A felicidade é a satisfação de todas as nossa inclinações ( tanto extensive, quanto à sua multiplicidade, como intensive quanto ao grau e também protensive, quanto à duração).

Designo por lei pragmática (regra da prudência) a lei prática que tem por motivo a felicidade; e por moral ( ou lei dos costumes), se existe alguma, a lei que não tem outro móbil que não seja indicar-nos como podemos tornar-nos dignos da felicidade.

A primeira aconselha ( lei pragmática- regra da prudência ) o que se deve fazer se queremos participar na felicidade; a segunda ordena ( lei moral, ou melhor, mandamento moral ou lei dos costumes) a maneira como nos devemos comportar para unicamente nos tornarmos dignos da felicidade.

A primeira funda-se em princípios empíricos; pois a não ser pela experiência, não posso saber quais são as inclinações que querem ser satisfeitas, nem quais são as causas naturais que podem operar a satisfação.

A segunda faz abstracção de inclinações e meios naturais de as satisfazer e considera apenas a liberdade de um ser racional em geral e as condições necessárias pelas quais somente essa liberdade concorda, segundo princípios, com a distribuição da felicidade e, por consequência pode pelo menos repousar em simples ideias da razão pura e ser conhecida a priori.

A razão pura contém num certo uso prático, o uso moral, princípios da possibilidade da experiência, isto é, acções que, de acordo com os princípios morais, poderiam ser encontrados na historia do homem.

Chamo mundo moral, o mundo na medida em que está conforme a todas as leis morais ( tal como pode sê-lo, segundo a liberdade dos seres racionais e tal como deve sê-lo segundo as leis necessárias da moralidade).O mundo é assim pensado apenas como mundo inteligível. Neste sentido é pois, uma simples ideia, embora prática, que pode e deve ter realmente uma influência no mundo sensível, para o tornar, tanto quanto possível, conforme a essa ideia.

A ideia de um mundo moral tem, portanto, uma realidade objectiva, não como se ela se reportasse a um objecto de uma intuição inteligível, mas na medida em que se reporta ao mundo sensível, considerado comente como um objecto da razão pura no seu uso prático e a um corpus misticum dos seres racionais que nele se encontram, na medida em que o livre arbítrio de cada um, sob o império das leis morais, tem em si uma unidade sistemática completa tanto consigo mesmo, como com a liberdade de qualquer outro.

Esta é a resposta à primeira das duas questões da razão pura que dizem respeito ao interesse prático: Faz o que pode tornar-te digno de ser feliz. A segunda pergunta diz o seguinte: Se me comportar de modo a não ser indigno da felicidade, devo também esperar poder alcançá-la? (O que posso esperar?) Para a resposta a esta pergunta é preciso saber se os princípios da razão pura, que prescrevem a priori a lei , também lhe associam necessariamente esta esperança.

Entendemos facilmente pela razão pura teórica que a resposta se segue imediatamente à pergunta: é claro que, ao não me comportar de uma forma indigna para a felicidade a alcanço, necessariamente. O simples princípio da causalidade aplicado a esta questão põe-nos imediatamente perante a resposta: produzindo determinadas causas ( não indignidade perante a felicidade) é certo que obterei determinados efeitos ( neste caso a felicidade).

Mas, num mundo inteligível ( ou seja, aquele mundo no qual se pensa mas que se não conhece substancialmente, e logo onde não se sabe se as mesmas leis do mundo que se conhece se aplicam ) a questão já não se pode por da mesma forma tão imediatista. O laço necessário para responder à questão não pode ser conhecido pela razão se tomarmos a natureza ( e as leis da natureza ) simplesmente como fundamento: só pode conhecer-se se uma razão suprema, que comanda segundo leis supremas ( morais ), for posta ao mesmo tempo como fundamento enquanto causa da natureza.

Ou seja, se essa razão suprema for colocada ao acesso do nosso conhecimento, que só pode conhecer leis da natureza e tal só pode ser feito se houver uma mediação, ou seja, algo, uma inteligência, neste caso, que transforme essas leis inteligíveis porque supremas e porque não são leis da natureza em leis que possam ser entendidas por nós, que só conhecemos leis da natureza.

O inverso nunca poderia dar-se, ou seja, nós mesmos termos acesso directo a essas leis porque infringiríamos todo o sistema da nossa possibilidade de conhecer até aqui sempre restringida ao campo das leis teóricas e nunca estendido ao campo das leis numenais ( leis do mundo inteligível mas transcendental).

Assim- diz-nos Kant- designo por ideal do sumo bem a ideia de semelhante inteligência (nunca pode ser a inteligência em si assim denominada porque se admitiria o acesso às coisas em si- logo ficamo-nos pela ideia ), na qual a vontade moralmente mais perfeita, ligada à suprema beatitude, é a causa de toda a felicidade no mundo, na medida em que esta felicidade está em exacta relação com a moralidade ( com o mérito de ser feliz ).

De reparar que a moral e a moralidade até aqui têm sido tratadas como entidades abstractas ( com algum grau de experimentação ou potencialidade de experimentação ) e que são exercidas, essas experiências da moral e da moralidade pelo homem, ser sujeito às leis da natureza ( entre as quais se inclui aquela que nos não permite o acesso àquilo que está para lá do físico ) de uma forma que podemos considerar espontânea, na medida em que ele não sabe a origem dessas leis embora as execute.

A partir daqui começamos a compreender a sua origem, ou seja, sabemos que temos trabalhado em imanência, ou, por outras palavras, com doações espontâneas na nossa vontade de princípios de moral e de moralidade ( e de felicidade ). Contudo, como devemos representar-nos necessariamente pela razão, como fazendo parte de semelhante mundo ( onde a imanência do sumo bem originário está presente ), e embora os nossos sentidos não nos apresentem senão um mundo de fenómenos ( entre os quais se não inclui, como é evidente, as imanências referidas ) deveremos admitir esse mundo ( de imanências ) como uma consequência da nossa conduta no mundo sensível (logo, uma conduta não fenoménica, ou então uma conduta fenoménica com influências nesse mundo de imanências ).

Contudo, e como este mundo de imanências não nos oferece a ligação ( ou seja, não nos permite racionalizar aquilo que, podendo resultar de uma acção fenoménica nossa não é contudo objecto da razão ) teremos de entender esse mundo ( da imanência ou da imanência originária ) como um mundo futuro para nós. Na verdade, e em rigor, a proposição está certa. Sendo um mundo que não é para nós terá de ser um mundo futuro, ou seja, um mundo que será futuramente para nós. (Entender este ser - é e será - não no sentido possessivo imediato do termo, mas pode muito bem ser entendido no sentido não imediato do termo na medida em que o facto de ser cognoscível, futuramente, o coloca desde logo num grau de dominação - proximidade pelo menos relativa ). Aquilo que conhecemos dominamos, ainda que essa dominação seja meramente formal e não de facto.

Assim, Deus e uma vida futura ( logo, a ressurreição ou a imortalidade da alma ) são, portanto, segundo os princípios da razão pura, pressupostos ( postulados ) inseparáveis da obrigação que nos impõe essa mesma razão.

A moralidade em si constitui um sistema, mas não a felicidade, a não ser enquanto distribuída em medida exactamente proporcional à moralidade. Mas isto é apenas possível no mundo inteligível ( do pensamento, da ideia ) governado por um sábio criador. A razão vê-se forçada a admitir um tal criador, assim como a vida num mundo que temos de encarar como futuro ou a considerar as leis morais como vãs quimeras, pois a consequência necessária que a razão vincula a essas leis, sem estes pressupostos ( postulados ) está condenada a desaparecer.

Por isso também toda a gente considera as leis morais como mandamentos, o que não poderiam ser se não unissem a priori às suas regras consequências apropriadas e, portanto, não trouxessem consigo promessas e ameaças. Mas também não o poderiam fazer se não residissem num ser necessário como no sumo bem, o qual somente pode tornar possível uma tal unidade final.

 



26/12/2007
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