ELEMENTOS SOBRE A REJEIÇAO DE FREUD
Vou tentar neste trabalho fazer não só uma dissertação sobre o termo "tabu" e os diferentes significados que lhe têm sido dados através dos tempos, todos eles directa ou indirectamente ligados, como também tentar demonstrar várias teses cujo conteúdo se irá desvendando ao longo destas linhas. Não se trata propriamente de estabelecer desde logo um mistério, em matéria tão árdua como esta, mas, sim de tentar desde as primeiras linhas salvaguardar o valor intrínseco daquilo que, podendo parecer acessório, é, por si, igualmente essencial para o desenvolvimento do tema e das teses propostas.
De esclarecer contudo que a tese ou as teses a desenvolver não terão nunca a pretensão de ser únicas e não terão também a pretensão de serem levantadas pela primeira vez embora eventualmente isso possa acontecer. Por outro lado, os temas a desenvolver e a apoiar enquadram-se, na nossa opinião, num campo mais alargado do que aquele que é normal encontrar-se em obras deste género, daí que também a diversidade de caminhos e de pistas deixadas em aberto possam eventualmente servir para que outras pessoas busquem por si mesmas significações e resultados que aqui só podem ser superficialmente aflorados.
Assim, somos da opinião que a diversidade de fontes a consultar e a diversidade de assuntos a tratar ao longo deste escrito poderiam ficar eventualmente prejudicados como entidades autónomas se um dos objectivos principais deste escrito fosse desde logo desvendado, ou seja, o conteúdo da tese ou teses que se pretendem preferentemente defender.
Freud, no "Totem e Tabu" dá à questão "tabu" a sua habitual visão das coisas, referindo escandalosamente (na época e ainda hoje) a morte do pai, o sacrifício do animal em substituição do pai (totem), o incesto, etc. e depois envereda pela refeição totémica como expurgação lustral do crime cometido. Outras interpretações desta refeição totémica encontram-se mais à frente quando se fizer referência aos mitos e à Cabala.
Desde já interessa no entanto desenvolver que a morte do pai, seja ela provocada por outrem ou seja ela auto-infligida, parece estar na origem do sacrifício e do culto que se lhe segue e que tem como objectivo principal proceder à reconstituição desse corpo, seja ele de forma física e visível ou apenas metaforicamente.
O sacrifício, desde o sacrifício humano até ao sacrifício de animais, é assim como que uma manifestação individual ou colectiva de remorso pela morte provocado do progenitor, seja ele uma pessoa ou um deus, consubstanciado na ideia possível de um regresso deste após obtenção do perdão. Assim, o tema da ressurreição, ou do reencontro entre diversas concepções de vida, está intimamente ligado a todo um conjunto de rituais que vai desde o ritual místico/religioso até aos diversos ritos sectários, nos quais se pode incluir a bruxaria.
A ideia da morte do pai e sobretudo do incesto, que lhe aparece invariavelmente ligado, apareceu na época (1910) como escandalosa e chocante e contribuiu para mais um dos conflitos Freudianos com a sociedade e com a comunidade científica da época. Por muitos defeitos que se possam pôr ao pai da psicanálise e inclusivamente por muito em causa que se possa o valor das suas teorias e da sua prática, certo nos parece ser que um elemento essencial aos inovadores nunca lhe faltou, ou seja, a coragem.
Não vamos fazer um retrato ou uma biografia de Freud, mas adivinhamos, através do nosso conhecimento quase comum e do dia a dia, quão difícil poderá ter sido a sua vida no que se refere à defesa das suas concepções sobre a psicologia e o homem. Por esses anos do final do século XIX e principio do século XX já tinham sido feitas e eram então ainda realizadas mais investigações sobre a antiguidade clássica e nomeadamente sobre as concepções vigentes nesse período no que se refere ao nascimento ou começo do mundo.
Através da análise das diversas interpretações, sobretudo literárias, mas também antropológicas, e algumas vezes umas e outras em simultâneo, havia então já uma ideia formada sobre a questão do tabu e da existência dos tabus e quase todas eram coincidentes num ponto. O problema do incesto, do matricídio, do parricídio e outras que só levemente se levantavam eram uma preocupação tanto da actualidade como o tinham sido na Antiguidade Clássica.
E era um problema actual porque os resultados das investigações de Darwin o tinham tornado ainda mais actual, e porque o desenvolvimento da ciência física recolhia uma parte substancial das atenções do mundo em desfavor das "ciências" do espírito, nomeadamente porque havia uma tendência, que em parte ainda se mantém intacta, de analisar os comportamentos e o pensamento do homem à luz do seu ser biológico e do seu comportamento físico relegando para segundo plano o seu ser racional.
Por outras palavras a escola empirista e experimentalista inglesa estava no auge facto ao qual não será seguramente estranho o desenvolvimento e queda relativa da lógica empreendida pela Revolução Industrial Inglesa.
Era esta questão dos tabus também um problema clássico, porque a literatura, o teatro e de uma forma geral a arte o tinham transportado através dos tempos até aquela data. Os poemas dos épicos gregos contudo tinham trazido este problema desde os séculos transportando-os numa perspectiva já bastante posterior ao começo do mundo e tinha-se deixado sempre para trás ou no esquecimento o principio dos princípios.
As concepções informes de coisas ou movimentos não eram cenicamente tão representáveis como os dramas dos próprios Deuses posteriores ao começo do mundo, e feitos pelos Gregos à imagem e semelhança física a até psicológica do ideal de homem clássico, vivendo num mundo imaginário mas com algumas semelhanças com a realidade virtual do próprio mundo grego.
Ficara, pois, para trás todo um conjunto de concepções sobre o sexo e o tabu anteriores ao aparecimento dos deuses gregos e das tragédias e comédias gregas e é sobre esse ponto, sobre essa ausência, que nos vamos debruçar em primeiro lugar.
De uma forma geral, e identificando o "fazedor" do mundo com Deus, na nossa concepção actual sobre Deus, como origem das coisas e do mundo, o que os Gregos não fizeram, verifica-se que, invariavelmente, o Deus - Pai era morto pelo Deus - Filho, algumas vezes com a cumplicidade ou tolerância da Deusa - Mãe.
O parricídio e o matricídio, mais tarde retratados na mitologia grega sobre outras formas mais elaboradas, apareciam desde logo, desde as primeiras concepções sobre o início do mundo, como estando relacionadas com o sexo e mais propriamente com a questão do incesto. Este tema, com toda a sua envolvência, acabou por ser transposto para a própria vivência dos Deuses assemelhados aos homens, com diversas variantes e nuances que pontuaram no imaginário da tragédia e da comédia clássica.
Ora, em nosso entender, o escândalo levantado por Freud desde as suas primeiras experiências sobre a psicanálise, e a rejeição de que as suas teorias e a sua prática sofreram tanto junto da comunidade científica como junto do mundo em geral, deveu-se, essencialmente ao facto deste ter trazido para a sociedade humana aquilo que era objecto de mito.
Édipo, Electra e todos os outros mitos tinham-se mantido até aí nesse campo e se nos era permitida a sua visão ela apenas se processava ao nível da representação teatral, da literatura, da arte em geral. Embora já fossem conhecidos os escritos de Nietzsche sobre as origens da tragédia e sobre a catarse do público em face desta, a sociedade não estava virada materialmente nem psicologicamente para a sua aceitação.
Assim, a atitude de Freud foi entendida como uma incursão do irreal no real inadmissível. Ora, interessa saber até que ponto Freud, ao trazer para a sociedade humana aquilo que era do Mito, não trouxe também preocupações humanas ainda latentes no nosso pensamento e sobretudo a nível do nosso inconsciente, e das quais a tragédia e arte grega ou representações de arte grega se faziam um eco surdo libertador ou catarse silenciosa.
Citamos Frederico Nietzsche na obra referida "A rigem da Tragédia" neste momento porque consideramos essencial desde logo deixar claro até que ponto todos estes problemas se entrechocam neste período Freudiano.
Diz Nietzsche: "Creio não afirmar uma falsidade ao dizer que este problema ( o da origem da tragédia grega) nunca foi seriamente enunciado e, por conseguinte, muito menos resolvido, por mais numerosas que tenham sido já as interpretações combinadas com farrapos dispersos da tradição antiga, tantas vezes recortados e cosidos uns aos outros. A tradição diz-nos, muito decididamente, que a tragédia grega surgiu do coro trágico, e que originariamente era só o coro, nada mais que o coro."
A explicação sobre esta questão estendeu-a Nietzsche por várias páginas que vamos ser obrigados a resumir, intercalando-as com algumas observações nossas. Segundo este autor, secundando a ideia de Schlegel que diz que o coro pretendia ser a essência ou a expressão da humanidade expectante ou, por outras palavras, o espectador ideal, que tal é impossível uma vez que não haveria na Grécia público suficientemente culto para poder absorver na sua plenitude toda a essência da tragédia grega.
Segundo este, entre o coro e as figuras que estão no palco existe uma espécie de identificação sobre o irreal, atitude essa que não seria possível obter através de alguma acção do público, na medida em que este está perfeitamente consciente de que assiste a uma obra de arte, a um artifício, e não a uma realidade empírica. Cai assim por terra, segundo Nietzsche a possibilidade de o coro ser uma forma primitiva do público, que, por evolução própria da arte teatral se manteve enquanto coro, numa altura em que o público, por si, desempenha já o seu papel por inteiro, ainda que não o papel ideal que lhe era atribuído por Schlegel.
Uma outra razão apontada por Nietzsche contra a concepção de Schlegel é o facto de que o espectáculo deixaria de o ser quando o público se identificasse de tal forma com o decorrido em cena que todo o conjunto se transformasse ele mesmo em actor. Ora, não há espectáculo sem espectador. Confessamos que estas evidências enunciadas por Nietzsche poderão agora aparecer como supérfluas, mas garantimos que mais à frente seremos obrigados a socorrer-nos delas.
Já quando se refere à tese de Schiller, Nietzsche é mais compreensivo. Este afirmou no prefácio à Noiva de Messina que o coro seria como que uma muralha humana de protecção à tragédia, para que esta permanecesse íntegra, separada do mundo real, salvaguardando o seu domínio ideal e a sua liberdade poética.
Foi pois assim que o Grego construiu, para este coro, uma ordem natural fictícia que povoou de entidades naturais fictícias, ficando assim a tragédia grega isenta da imitação servil da realidade. Assim, através da acção do coro, a tragédia grega não é um mundo fantástico que paire entre o céu e a terra mas sim um mundo dotado daquelas características que os Gregos atribuíam ao Olimpo e aos Deuses.
Por outras palavras, a tragédia grega era defendida da realidade e da idealidade absoluta pela presença do coro - cuja função será mais desenvolvida à frente - colocando-se assim no domínio da representação mística. Isto di-lo Nietzsche concretamente quando afirma: " O sátiro, na qualidade de coreuta dionisíaco, vive numa realidade religiosa reconhecida pela sanção do mito e do culto."
Logo, a identificação do público em face da tragédia grega não se verifica pela sua intrusão no campo específico da tragédia mas sim pela aquisição de um estado de espírito resultante da observação da tragédia. É importante transcrever agora todo o texto de Nietzsche que se segue: " Durante a embriaguez estática do estado dionisíaco, abolindo as separações e os limites ordinários da existência, há efectivamente um momento letárgico, durante o qual se desvanecem todas as lembranças pessoais do passado.
Entre o mundo da realidade dionisíaca e o mundo da realidade quotidiana cava-se esse abismo do esquecimento que os separa um do outro. Mas, logo que volta a apresentar-se à consciência a realidade quotidiana, esta é sentida como tal com aborrecimento, e uma disposição ascética, negadora da vontade, é o resultado daquela impressão."
E mais à frente acrescenta Nietzsche: "Aqui, no mais alto perigo para a vontade, a arte surge e avança, como um deus salvador que traz consigo o bálsamo benfazejo: só ela tem o poder de transformar o aborrecimento do que há de horrível e absurdo na existência, e transforma-o em imagens ideais que tornam agradável e possível a vida. Tais imagens pertencem à categoria do sublime, em que a arte nos mostra o domínio sobre o horrível, e à categoria do cómico, em que a arte nos liberta do aborrecimento pelo absurdo.
O coro dos sátiros do ditirambo foi a salvação da arte grega; os acessos de desespero há pouco evocados desvaneceram-se graças ao mundo intermediário destes companheiros de Dionísio."
As citações são de facto um pouco longas mas era difícil poder tirar-se uma conclusão que se coadunasse com aquilo que pretendemos afirmar sem as fazer completamente. Na verdade Nietzsche faz todo um conjunto de afirmações que nos deixam como evidente todo um conjunto de ideias que está subjacente aos espíritos na época em análise; finais do Sec. XIX e princípios do Sec. XX.
Sejamos, contudo, mais claros. Independentemente da sua ideia sobre a arte e sobre a tragédia grega, aquilo que pretendemos retirar dos textos extraídos de Nietzsche é que o misticismo é reconhecido como factor libertador da realidade considerada horrível, por um lado, e que esse mundo intermediário, figurado aqui pela tragédia e pela arte grega, é a única via para se atingir o sublime, onde se demonstra o domínio sobre o horrível.
Ora, e regressando agora a Freud podemos compreender melhor porquê as suas ideias sobre a sexualidade foram tão mal aceites e tão mal compreendidas numa sociedade, sobretudo a sociedade culta, que buscava na evasão, e neste caso na evasão mística, uma fuga à realidade. Ora Freud procedeu de forma inversa, ou seja, trouxe para a realidade aquilo que era do mito em pleno período romântico.
Por outro lado interessa também referir se as questões mais polémicas levantadas por Freud se enquadram num período em que o homem, no seu todo, pretende e se esforça ainda para se libertar desses seus comportamentos do passado, ou se retratam, antes de mais, o facto de o homem caminhar de novo para esse tipo de comportamentos, regredindo, em termos teóricos, para a barbárie passada.
Sabemos que existe em todo o período romântico um saudosismo da idealizada cultura da Idade Média. Lendo Dickens e os seus retratos da sociedade inglesa do Sec.XIX, para não falar de outros autores, sabemos hoje quanta razão poderia ter Nietzsche, Schiller, Ghoette e outros românticos para idealizarem um mundo aparte, onde a evasão e mesmo a evasão mística cumprissem a sua função.
Essa preocupação existia desde o início da Revolução Industrial inglesa do Sec. XVIII, tanto mais que ela tinha revelado problemas de equilíbrio e desequilíbrio populacional que passaram a ser então uma preocupação constante. Neste período recordemos que uma das Leis Inglesas sobre os pobres os remetia ao contexto asilar, separados por sexos, para que não procriassem.
É pois neste contexto histórico que Freud levanta o problema, ou seja, numa altura em que também as descobertas Darwinianas estavam no auge da sua difusão e numa altura em que o homem sentiu como necessidade imperiosa demonstrar as suas diferenças em relação ao símio do qual Darwin dizia que ele descendia.
Inscrivez-vous au blog
Soyez prévenu par email des prochaines mises à jour
Rejoignez les 7 autres membres