EXPLICATUDO

EXPLICATUDO

ENVELHECIMENTO E MORTE

ENVELHECIMENTO E MORTE


Durante milénios, o homem foi o senhor absoluto da sua morte e das circunstâncias da sua morte. Hoje deixou de o ser. Vejamos como.

Primeiro entendia-se como coisa normal, que o homem sabia que ia morrer, quer se apercebesse disso espontaneamente, quer houvesse necessidade de o informar. Nesse tempo, raramente a morte era súbita, mesmo em caso de acidente ou de guerra, e a morte súbita muito receada, não só porque não permitia o arrependimento, mas porque privava o homem da sua morte. Num tempo em que as doenças ou ferimentos um pouco mais graves eram quase sempre mortais, era relativamente fácil prever a sua morte. As pessoas compreendiam que iam morrer ou, quando o não compreendiam competia a outros adverti-lo.

Durante algum tempo foi o médico, investido dessa função pelo Papa, posteriormente foi o " mensageiro da morte " ao qual a literatura medieval dá aquela figura tétrica do encapuçado com a enxada de lâmina triangular. Quanto mais se sobe no tempo e se sobe na escala social e urbana, menos o homem sente em si mesmo a proximidade da morte, e cada vez precisa mais de se preparar para ela ( tem mais coisas a dispor ) , encarregando –se disso os familiares desde o Sec. XVII.

O moribundo não devia ser privado da sua morte. Tão pouco devia deixar de presidir a ela. Tal como se nascia para o conhecimento público morria-se em público. Desde que alguém estivesse doente, de cama, o quarto enchia-se de gente: pais, filhos, amigos, vizinhos, membros das confrarias. Quando, na rua, os transeuntes encontravam o padre que transportava o viático, o uso e a devoção mandavam que o seguissem até ao quarto do doente, mesmo que o não conhecessem.

Não se julgue que a assistência nos derradeiros momentos era um costume piedoso imposto pela igreja. Os padres, esclarecidos ou protestantes tinham tentado, antes dos médicos que argumentavam razões de higiene pessoal e pública, pôr ordem naquele costume a fim de preparar o doente para um fim edificante.

Ainda no Sec. XIX, pessoas piedosas, depois de terem cedido ao costume, pediam aos numerosos circunstantes que abandonassem o quarto, á excepção do padre, a fim de que nada viesse perturbar o face a face com Deus. Mas o costume mandava que a morte fosse a ocasião de uma cerimónia ritual em que o padre tinha lugar, mas entre os outros participantes. O papel principal competia ao próprio moribundo. Ele presidia e dificilmente hesitava: sabia como se devia comportar tantas tinham sido as vezes em que fora testemunha em cerimónias idênticas.

Chamava um por um os seus parentes, os seus familiares, os seus servidores, até aos mais baixos. Dizia-lhes adeus, pedia-lhes perdão, dava-lhes a sua benção. Investido duma autoridade soberana, principalmente nos Sec. XVIII e XIX, pela aproximação da morte, dava ordens, fazia recomendações, mesmo quando o moribundo era uma moça muito jovem , quase uma criança.

Hoje em dia já nada resta nem da noção que cada um deve ter de que o fim se aproxima, nem do carácter de solenidade pública que caracterizava o momento da morte. O que devia ser conhecido antes, é agora escondido, o que devia ser solene antes, é agora escamoteado.

É cada vez mais evidente que o primeiro dever da família e do médico é dissimular a um doente a gravidade do seu estado. O doente não mais pode saber ( salvo casos excepcionais ) que o seu fim se aproxima. O novo costume obriga que se morra na plena ignorância da sua morte.

Já não é simplesmente um costume introduzido ingenuamente, tornou-se uma regra moral. V. Jankélévitch, num colóquio de médicos sobre o tema da morte, em texto posteriormente inserto na revista Médecine de France, n.º 17, 1966, afirmava: " Deve-se mentir ao doente ? O mentiroso - declara ele - é aquele que diz a verdade. Para mim há uma lei mais importante do que todas, que é a do amor e da caridade."

Vê-se nesta posição a extraordinária inversão de sentimentos e, por conseguinte, de ideias. Iremos demasiado depressa, mas sem nos afastarmos muito da realidade da causa, se dissermos que numa sociedade de felicidade e de bem estar, não há lugar para o sofrimento, a tristeza e a morte.

Esta evolução está intimamente ligada ao progresso do sentimento familiar e ao quase – monopólio afectivo da família no nosso mundo. Só que, nova concepção do exercício da pietas latina atrás referida, a família deixou de tolerar o golpe que vibrava no ser amado e também a si próprio.

Ou inversamente, se quisermos também ordenar de outra forma: em 1848 o médico declara á filha de uma doente o seu estado terminal. Uma hora depois a doente saía do banho e disse á filha: " mas eu não vejo nada, acho que vou morrer!" Que alegria singular me causam neste momento terrível as suas palavras calmas, mãe - argumenta a filha. Sentia-se aliviada porque a dor duma revelação lhe fora poupada.

A família moderna demitiu-se do anúncio da morte. A partir do momento em que um risco grave ameaça um membro da família, esta conspira imediatamente para o privar da informação e da liberdade de saber. O doente torna-se então um menor, como uma criança ou um débil mental, que o esposo ou os pais tomam a seu cargo e separam do mundo.

E ele, o doente, entrega-se ao afecto dos seus. Se, apesar de tudo, adivinhou, fingirá não saber.

Na morte de outros tempos desempenhava o papel daquele que vai morrer, agora desempenha o papel daquele que não sabe que vai morrer.

Mesmo quando a doença é incurável, caso de certos tipos de cancro, o seu conhecimento constrange a sociedade a multiplicar apressadamente as instruções habituais de silêncio, a fim de reduzir este caso excessivamente dramático à regra da quase banalidade.

Um estudo efectuado em seis hospitais americanos por Glaser e Strauss ( A Consciência de morrer , Chicago, 1965 ) resulta na concepção de um novo modelo de morte que estes autores ingenuamente definem como " um tipo de morte que possa ser aceite pelos sobreviventes ". Ou seja, já não se trata de constatar a morte da pessoa, trata-se de, ao torná-la explícita, evitar a sua rejeição pelos sobreviventes.

Se, alguns médicos e alguns enfermeiros adiam o mais possível o momento de avisar a família e se evitam informar o próprio doente é por receio de se verem envolvidos numa cadeia de reacções familiares. Actualmente cerca de 80 % das mortes têm lugar no hospital, dois séculos antes verificava-se a situação inversa.

Este texto pode parecer excessivamente cruel – impõe-se que o digamos pelo menos agora - mas estamos a referir uma recolha de textos efectuada por Philippe Ariés ( ver bibliografia ) que compila diversos autores, desde a idade média até ao Sec. XX.

A morte, era noutros tempos uma figura familiar ( sempre temida mas sempre presente como possibilidade ); hoje, falar da morte é provocar uma situação excepcional, exorbitante e sempre dramática: basta nomeá-la para provocar uma tensão emocional incompatível com a regularidade da vida quotidiana, provocar cenas que arrancam as personagens ao seu papel social, que o violam.

Essas cenas são as crises de desespero dos doentes, os seus gritos, as suas lágrimas e, em geral, todas as manifestações demasiado exaltadas, demasiado barulhentas, ou demasiado emocionantes, que ameaçam perturbar a serenidade do hospital e deixar os sobreviventes embaraçados.

Porque, mesmo que se reconheça que a morte pode ser um desenlace injusto para um indivíduo que foi sempre adiando a sua morte ( a sociedade científica vai cada dia descobrindo novas esperanças e possibilidades de esperanças que se transformam interiormente em certezas para prolongar a vida ) essa injustiça tem de se vergar aos factos e ajustar á realidade, e essa realidade, pede, pelo menos, que se finja que se não tem medo da morte porque nada se tem a temer ( a ser perdoado ) para uma tranquila e certa transição para uma outra vida melhor ou tão boa como esta.

Neste quadro da morte poderemos entender melhor aquilo que se passa com a proximidade da morte que é o envelhecimento. O idoso, por palavras curtas, está, por definição, demasiado próximo da morte para que não inspire, pela sua presença e pela sua imagem a ideia da morte. Numa outra imagem crua, esta de Piero Camponesi já citado, está demasiado morto para ser encarado frontalmente como vivo.

 



16/11/2007
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