O MEDO DO ENVELHECIMENTO E O FANTÁSTICO TERRENO
O MEDO DO ENVELHECIMENTO E O FANTÁSTICO TERRENO
Citando livremente Piero Camporesi em " O Pão Selvagem " que por sua vez cita também livremente uma compilação dos trabalhos do médico Gabrielle Fallopio ( 1523 – 1562 ) numa recolha das suas obras feita em 1578 ( de recordar que Fallopio foi o primeiro a descrever órgãos essenciais : a osteologia craniana, o ouvido interno e as trompas de Falopio ) vive-se, no Sec. XVI, em Itália, uma sociedade vampiresca de obcecados, fugindo do tormentoso sentido da brevitas vitae e do medo da morte, que tenta desesperadamente prolongar a vida sugando sangue jovem, abrindo e fechando veias do próprio corpo e do dos outros, possuída ( a sociedade ) de uma cultura corporal nevroticamente sensível á circulação interna dos humores e convencida da superioridade absoluta do bom sangue humano, cuja " maravilhosa virtude ", se destilado em alambique, não só cura todas as enfermidades mas também retarda a morte e restitui a juventude.
Ainda continuando a recolha que fizemos para este efeito seguem-se um conjunto de citações : " Não existe coisa nem alimento que seja mais conforme á alimentação humana do que a carne humana " – observava Girolamo Manfredi, médico – astrólogo bolonhês do final do Sec. XV. No seu livro intitulado Il Perché – que foi traduzido do latim em 1588 em Veneza, por Ventura di Salvator este considera- a (...) uma " Obra muito útil e muito necessária expurgada das coisas que pudessem ofender o pudor do leitor ".
De notar que esta preferência pela carne humana se baseava em princípios dietéticos destinados a não desiquilibrar os humores internos que são de origem ancestral, e, logo, a prolongar a vida não a abreviando. A carne humana preferida, seria, pois, aquela de indivíduos suficientemente sãos, onde os desiquilíbrios humurais não estivessem - pelo menos visivelmente - presentes.
Por seu lado, Campanella, na sua prestigiada Cidade do Sol ( uma das obras primas da Utopia, emparelhada, qualitativamente, com a Utopia de Tomás Morus ou mesmo com a Cidade de Deus de Santo Agostinho ) refere que os velhos " a temperar as carnes não têm rival : deitam-lhes macis, mel, manteiga e bastantes aromas que confortam grandemente. Têm um segredo para renovar a vida de sete em sete anos " ... ( Tomás Campanella –Sec. XVI – reedição de 1962- Milão ).
Posteriormente o Antidotário da Escola Médica Bolonhesa de 1771, refere a receita de Niccoló Salernitano para as pílulas da longa vida.
Dentro da mesma recolha refere, em 1586, o Veneziano Giovanni Maria Bonardo, que o homem, para além de ter de se proteger da velhice e da morte, do caminho irreversível para o nada, tinha também que se proteger do antagonismo dos já referidos humores internos, que, na sombra lutam entre si pondo em risco o equilíbrio humano e abrindo caminho a mil doenças.
Para fugir a este pérfido orvalho – citamos António Vignato, Bolonha, 1630 – que se abatia sobre a cabeça dos mortais, os ricos recorriam a uma farmacopeia tão dispendiosa quanto inútil, exigindo pó de ouro e de pedras preciosas moídas nas beberagens ou incorporadas nos medicamentos mais nobres, para prolongar a juventude e retardar a velhice.
Outros, para o mesmo efeito usam o vinho viperino ( sangue de víbora ) e a carne de víbora preparada e temperada com outros alimentos.
Já para os pobres, privados de riqueza para acudir a estes males de forma tão dispendiosa era aconselhado o recurso á aguardente, considerada a alma do vinho, ideia que segundo o autor vem desde as Escrituras e é, para os pobres, ouro potável...licor maravilhoso para chamar á vida os que estão perto da morte, e para dar forças aos velhos e aos convalescentes.
Domenico Auda ( Breve compêndio de segredos maravilhosos – 1668 ) e Marsilio Ficcino ( na sua obra Da Vida Sã em tradução toscana de 1568. Ficcino 1433 - – 1499 é considerado figura de vulto da literatura renascentista desenvolvendo o conceito do amor na perspectiva católica ortodoxa tendo influenciado os portugueses Camões e Sá de Miranda, ) referem que para retemperar o corpo gasto nada melhor que a quinta essência dos capões, obtida pela putrefacção da carne ( de galo capão = capado ) num vaso de vidro mergulhado depois em esterco de cavalo.
Outros criam galinhas e alimentam-nas com erva – besteira ( erva ranunculácea geralmente venenosa ) e dessas galinhas fazem comida para quem quiser rejuvenescer.
O conjunto de citações sobre questões relacionadas com o horrível ( no seu próprio tempo não deveriam constituir manjares de sabor requintado alguns deles ou isentos de efeitos secundários dolorosos ou mesmo mortais, outros ) deste horrível interpretado como salvador e como socorro dos temores da morte e do envelhecimento, poderia estender-se quase indefinidamente.
Na realidade o homem, ao procurar a imortalidade ou a juventude eterna, que é o mesmo melhorado qualitativamente, nem sempre tem encontrado nas religiões respostas convenientes para o seu desejo de imortalidade e muito menos alguma resposta á sua imortalidade no estado corpóreo presente ( ou melhorado ) o que o continua a preocupar, como se sabe, actualmente de forma mais sofisticada, por exemplo, através do congelamento pré ou post - morten.
E da descrição de factos históricos que vimos atrás e que consideramos inumanos passamos á fase da sua aceitação algo complacente por antropólogos recentes e igualmente de nomeada, como é o caso de Claude Lévi-Strauss , em Tristes Trópicos:
" Tomemos o caso da antropofagia (...) . Teremos primeiro que dissociar nela as formas propriamente alimentares, isto é, aquelas em que o apetite pela carne humana se explica pela carência de outro alimento animal, como era o caso em certas ilhas polinésicas. (... ) Restam-nos então as formas antropofágicas que se podem chamar positivas, aquelas que provêm de uma causa mística, mágica ou religiosa: assim, a ingestão de uma parcela do corpo de um ascendente ( pais e avós ) ou de fragmentos de um cadáver inimigo pode permitir a incorporação das suas virtudes num caso ou ainda a neutralização do seu poder noutro caso." Aceitação de uma virtude, eliminação de um poder contrário, por ingestão, é uma prece que percorre todos os tempos mas que procura obter resposta por outras vias.
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