RELAÇÕES DA EPISTEMOLOGIA COM A FILOSOFIA
RELAÇÕES DA EPISTEMOLOGIA COM A FILOSOFIA
Conforme temos vindo a verificar, as ciências, sejam elas a ciência propriamente dita entendida de uma forma geral, como qualquer dos seus ramos, como a teorização do conhecimento que a elas se liga, têm tido, ao longo dos séculos, relações com a filosofia que são geralmente entendidas como amputadoras da possibilidade de qualquer uma delas viver por si só com os métodos e conhecimentos que adquire na sua própria concretização da realidade que lhe está subjacente.
A parte da filosofia à qual são atribuídas as culpas ( se quisermos entender assim ) desse relacionamento alegadamente prejudicial ao desenvolvimento das ciências na sua independência e saber fazer e conhecer próprios, a metafísica, aparece como antagonista do pensamento científico.
A metafísica, estando para além da física, ou seja, transcendendo a física ao tratar das chamadas grandes questões do homem ( o que é, o que pode ser, como é ) e não das coisas, debruça-se essencialmente sobre questões que ultrapassam toda a possibilidade de comprovação; ou seja, é uma construção logicamente alicerçada em princípios e em pressupostos à priori ( ou seja, dos quais se parte para pensar de uma determinada maneira ) e rejeitando por isso, todo o posteriori resultante de experiências que contradigam os princípios em que se baseia à priori.
Kant, num esforço meritório que muitos reconhecem procurou conciliar os dados do aposteriorismo empirista / experimental ( de experimento – experiência ) com os dados a priori da filosofia introduzindo os famosos juízos sintéticos à priori, ou seja, aqueles juízos que não resultavam nem de um apriorismo puro nem de um aposteriorismo puro, eram antes uma síntese de ambos ( por isso se chamavam de sintéticos ).
Contudo não bastam construções logicamente aceitáveis para alterar a realidade das coisas, e um facto concludente que se prolonga desde há séculos é que a ciência é eminentemente anti-metafísica, pelo menos na concepção dos cientistas, e profundamente anti-filosófica no entender dos filósofos que analisam essas mesmas concepções científicas daqueles que defendem o seu anti - metafisismo.
Este capítulo tem por objectivo dar nota dessa batalha algo surda e das concessões praticadas por uns e outros ( filósofos, filósofos/ cientistas, cientistas e cientistas / filósofos).
1-RELAÇÕES DAS CIÊNCIAS COM A FILOSOFIA
Diz-se sumariamente que a Ciência é a metodização da experiência ou que é a experiência metodizada. Mas, antes de mais interessará classificar aquilo que se entende como experiência começando por aqueles que primeiro sobre ela se debruçaram, ou seja, os filósofos.
A perspectiva dos filósofos gregos encontra-se bem expressa na Metafísica de Aristóteles, na parte que refere a hierarquia dos saberes. Segundo este, aquele que descobriu uma arte foi justamente admirado pelos outros não só devido à utilidade da sua descoberta mas também pela sua sabedoria.
Esta arte de que fala Aristóteles compõe-se daquilo que actualmente entendemos como arte profissional ( técnica ) e arte que se mostra ( artística ). Ainda e segundo Aristóteles, saber que A se dá bem com um determinado medicamento, ou que B se dá bem com outro determinado medicamento, é uma demonstração resultante da experiência da utilização desses medicamentos em A e B. Mas saber que o indivíduo C, se dá bem com o medicamento ministrado a A ou a B ( ou com os dois ) , sem que sobre ele tenha sido feita qualquer experiência, isso é Arte.
Ora, a arte definida por Aristóteles compreende não só a experiência ( a sua relegação para plano inferior ) como ainda um processo quase divinatório, ou seja, a construção de uma lei, de um princípio generalizável a C adquirido ou não nas experiências efectuadas em A e B.
Daí que o "artista" seja admirado não só por aquilo que faz mas também por aquilo que sabe advindo este saber ou não daquilo que faz ( fez ). A arte é assim, um processo de descoberta que vai além da experiência imediata.
Dentro desta linha de raciocínio aristoteliano não é de admirar que as artes, elas mesmas, acabem por ser divididas entre artes da experiência, ou dela resultantes ( ainda que de forma mediata ou seja, através do dom divinatório a que fizemos referência ) e que satisfazem as necessidades físico / biológicas do homem e as artes que resultando ou não de qualquer experiência se destinam ao prazer dos homens e que, logo, são supérfluas a este processo físico / biológico.
Este último artista, segundo Aristóteles, não descobrirá tão só o enunciado medicamento que faz bem a C ( ao seu corpo ), como descobre ainda um "medicamento" para o qual não há mal que ele cure, ou seja, ultrapassa o utilitário ou o útil para se colocar no plano do supérfluo, criando satisfação de uma necessidade que ele mesmo cria / descobre. Este artista é superior ao outro, sabe mais que o anterior porque não teve qualquer patologia ( referência ) como base de raciocínio.
A ciência, como saber prático é relegada para segundo plano em desfavor das construções teóricas, algumas derivadas de experiências remotas outras resultantes de meras especulações sistemáticas, ou seja, se é verdade que a A se segue B e que a B se segue C logo outro se deve seguir a C, por mero processo sistemático / lógico.
1.1-Cientistas Filósofos ou Filósofos Cientistas ?
Dadas as afirmações que antecedem e outras do mesmo sentido referidas quer neste trabalho quer noutros locais pode compreender-se porquê a filosofia e as ciências estiveram durante muito tempo confundidas uma com a outra e que inclusivamente muitos cientistas tenham visto na ciência perspectivada pela filosofia uma entidade mais válida para resposta a questões não prováveis pelo método experimental.
Hoje ainda, e apesar dos limites entre uma e outra ( Ciência e Filosofia ) estarem de alguma forma mais clarificados, os resquícios dessa indeterminação anterior sob a qual foram formados culturalmente muitos cientistas e da necessidade de se dar resposta ao não – provável fazem ainda os seus estragos ( ? ) na compreensão desses mesmos limites. É o que entende, entre outros, Louis Althusser em " Filosofia e Filosofia espontânea dos Cientistas ".
Segundo Althusser, em altura de crises científicas, alguns cientistas reconhecem que sempre encerraram dentro de si um filósofo adormecido, mas, como é necessário arranjar um bode expiatório para as frustrações, culpam esse filósofo dupla e contraditoriamente, ou seja, porque contribuiu para a sua crise científica e porque nada terá feito para a evitar.
Como reacção, saem estes cientistas da ciência errada ( pelas razões referidas) mas continuam na ciência tentando corrigi-la com os seus próprios métodos científicos fazendo uma prática e uma teoria adaptada à negação do erro ( crise ) anterior, ajustando assim novas concepções científicas em substituição das erradas. Até que ponto, ou em que grau, abandonam a filosofia ( o filósofo adormecido que vivia / vive (?) neles ) será uma questão a deixar em aberto...
Para complicar o processo de análise entre o que é ser cientista e ser filósofo não faltou também quem, na história da filosofia, afirmasse que a filosofia é uma ciência, como é o caso de August Comte ( 1798 / 1857 ), em quem o positivismo que defendeu sendo declarado como ciência não se limitava a uma teoria do saber de uma ciência determinada, nem sequer a uma sistematização das ciências, mas representava, isso sim, um sistema geral da realidade, um sistema não só de verdades mas também de valores, isto é, uma filosofia.
Aquilo que caracteriza a ciência é o apelo à verificação, a subordinação das teorias aos factos, o espírito experimental, enquanto a filosofia se satisfaz com uma coerência interna e se limita progressivamente aos problemas que não podem estar sujeitos ao controlo da experimentação. Esta seria uma tranquilizadora separação metodológica e sistemática se as questões se pudessem apresentar de uma forma única ou decisiva mas assim não é.
1.2-Ciência Física e Humana
Lord Acton, um historiador, diz-nos que a Ciência é a combinação de grande número de factos similares na unidade de uma generalização, dum princípio, ou de uma lei que nos permitem predizer com certeza a repetição de factos semelhantes nas condições dadas.
Este conceito de ciência aplica-se à Astronomia, à Física, à Química, a todo o saber que abranja o estudo de relações elementares da matéria, a todos os campos onde os fenómenos se repetem indefinidamente e se podem observar o número de vezes que se desejar, ou a experimentação consegue, em condições determinadas, provocar a repetição voluntária desses mesmos fenómenos.
Entre eles ( factos ) estabelecem-se relações necessárias e previsíveis, de causa e efeito ( a uma dada causa corresponde um dado efeito ) enunciadas de forma simples em leis ou princípios. Verifiquemos que se fala de matéria, de elemento, de factos, de relações de causa e efeito, de um universo acertado que se pretende mecanicamente perfeito, breve, do mundo físico ou elementar.
Karl R. Popper, crítico do determinismo que esta definição de ciência implica, diz-nos, citando Laplace: " Devíamos considerar o estado actual do universo como efeito do seu estado anterior e causa do que se vai seguir. " Verifiquemos aqui até que ponto estamos em presença da definição de ciência como dado estático que referimos atrás.
Mas Laplace vai mais longe quando afirma : " Suponha-se uma inteligência que pudesse conhecer todas as forças pelas quais a natureza é animada e o estado, num instante, de todos os objectos que a compõem; para essa inteligência nada poderia ser incerto; e o futuro, tal como o passado estaria presente aos seus olhos ". Implica, nesta definição, o desenho daquilo que se define como homem / objecto natural ou da natureza.
Sabendo-se que essa inteligência não existe, embora se verifique a omnipresença, não se verifica o determinismo, ou seja, o destino como delineado, mas sim como cognoscível. Para que houvesse uma delineação prévia – e é isso essencialmente que preocupa o homem - seria necessário que essa inteligência referida por Laplace não só conhecesse como interviesse no processo, ou seja, que fosse simultaneamente omnipotente.
Laplace, se o entendermos, não nos estabelece limites, apenas nos diz que existem limites que desconhecemos e que precisamente por os desconhecermos dada a sua complexidade eles são indeterminados.
Na Psicologia também se encontram afirmações semelhantes propostas por Karl Popper na recolha que faz de Hobbes : " a vontade também é necessariamente causada por outras coisas das quais não dispõe ( ela, vontade ); e assim, segue-se que as acções voluntárias têm, todas elas, causas necessárias." e Hume " Parece que a conexão entre motivos e acções voluntárias é tão regular e uniforme como em qualquer parte da natureza ".
Tanto num caso como noutro o que ressalta é a não liberdade total quer da vontade ( não é unicamente uma acção do sujeito ) quer nas acções voluntárias cuja amplitude é captável se forem captáveis os motivos dessa acção voluntária. Assim, se o homem desenha o seu destino fá-lo dentro de quadros de possibilidade / impossibilidade. O que caracterizará o homem ( enquanto ser volitivo ) será a opção entre várias possibilidades de objectivação da vontade e a rejeição consequente da impossibilidade.
Pode-se acrescentar uma citação de Kant igualmente recolhida por Popper: "Assim pudemos admitir a verdadeira ideia de que poderíamos calcular antecipadamente e com certeza – tal como fazemos com os eclipses lunares ou solares – o comportamento futuro de qualquer homem, se tivéssemos uma penetração tão profunda nos seus modos de pensar que conhecêssemos todos os móbiles de acção mais íntimos, bem como todas as circunstâncias externas relevantes: no entanto, ao mesmo tempo, podemos afirmar que o homem é livre ".
E é livre, o homem, porque não se conhecendo ( não se possuindo a inteligência requerida ) os actos praticados pelo homem aparecem-nos, pela sua complexidade e diversidade, desligados de móbiles ( causas ) conhecidas.
Em certo sentido podemos afirmar que a liberdade do homem, por exemplo, ou um acaso científico, têm lugar não porque eles se processem num campo de absoluta livre escolha ou livre determinação, mas simplesmente porque a ciência (as ciências) os não dominam cognoscivelmente .
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